segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O senhor do labirinto e da arte


Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada região entre a realidade e o delírio, a vida e a arte. Considerado louco por alguns e gênio por outros, a sua figura insere-se no debate sobre o pensamento eugênico, o preconceito e os limites entre a insanidade e a arte no Brasil. A sua história liga-se também à da Colônia Juliano Moreira, instituição criada no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX, destinada a abrigar aqueles classificados como anormais ou indesejáveis (doentes psiquiátricos, alcóolatras e desviantes das mais diversas espécies), local onde foi diagnosticado como um esquizofrênico-paranóico e onde recebeu o número de paciente 01662, permanecendo por mais de 50 anos. Natural de Japaratuba no Sergipe, Arthur Bispo é descendente de escravos africanos, foi marinheiro na juventude, vindo a tornar-se empregado de uma tradicional família carioca. Nasceu no ano de 1909 ou 1911,não se sabe ao certo.
Arthur Bispo foi redescoberto a partir do trabalho do crítico Frederico Morais na década de 80, que organizou uma exposição e lançou uma possibilidade de compreensão e sistematização do conjunto da obra. Todavia, Rosário é desconhecido pela maioria do público brasileiro e curiosamente, também em sua terra natal. Pode-se pensar, afinal, que muitos grandes artistas plásticos são desconhecidos do grande público no Brasil, pelas características da formação e desenvolvimento educacional da população do país. No caso de Rosário, o que surpreende é que sua obra seja fácil de agradar qualquer observador. Isso se deve a presença de um forte resultado lúdico nas peças, pelo colorido, formas, referências e pelos brinquedos que elaborou. A utilização de materiais e objetos do cotidiano possibilita que o apreciador se identifique. Após o impacto inicial das primeiras exposições, foram escritos artigos, ensaios e trabalhos científicos diversos. Bispo do Rosário virou livro, peça de teatro e ano passado virou filme, pelas mãos do cineasta pernambucano Geraldo Motta.
O filme é intitulado O Senhor do Labirinto e teve sua premiére no Festival de Cinema do Rio este mês, maior evento audiovisual da América Latina, o mesmo ressalta a vida e obra do artista sergipano, interpretado pelo ator Flávio Bauraqui. E sendo devidamente premiado neste festival com o prêmio de Melhor Longa Metragem de Ficção pelo Júri Popular. A produção cinematográfica teve o apoio do Governo do Estado, através do Banco do Estado de Sergipe (Banese). O filme foi gravado quase que 90% em solo sergipano com exceção de duas cenas que foram feitas no Rio de Janeiro. No papel de Arthur Bispo do Rosário, o ator Flávio Bauraqui tem seu melhor momento de protagonista no cinema e faz bom uso dele. Com uma atuação acima da média para protagonistas e usando uma maquiagem pesada para viver Bispo do Rosário mais velho, que deu mais veracidade à sua interpretação que foi muito elogiada pela crítica. “Gosto de desafios. Foi um dos personagens que eu mais sofri fazendo, mas adorei todo o processo”, disse o ator.
Produziu mais de mil obras consagradas no mercado internacional de arte contemporânea que permaneceram como propriedade da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, hoje desativada como instituição manicomial e transformada no Museu Arthur Bispo do Rosário. Bispo do Rosário criou um universo lúdico de bordados, durante os mais obscuros períodos da psiquiatria, época dos eletrochoques, lobotomias e tratamentos violentos aplicados para o controle de crises. Diversos tipos de materiais oriundos do lixo e da sucata eram utilizado por ele em suas obras, que seriam classificados anos depois como arte vanguardista e comparados à obra de Marcel Duchamp. Entre os temas do seu trabalho, destacam-se navios (tema recorrente devido à sua relação com a Marinha na juventude), estandartes, faixas de mísseis e objetos domésticos. A sua obra mais conhecida é o Manto da Apresentação, que Bispo deveria vestir no dia do Juízo Final. Com eles, Bispo pretendia marcar a passagem de Deus na Terra.
Sem se dar conta, Bispo não só driblou os mecanismos de poder no manicômio como utilizou sobras de materiais dispensados no hospital para criar suas obras, inventando um mundo paralelo.
Dizia-se um escolhido do todo-poderoso, encarregado de reproduzir o mundo em miniaturas. Eram suas representações, afirmava. Paradoxalmente, as obras, que deveriam representar tudo o que havia na Terra acabariam reconhecidas como peças de vanguarda, incluídas por críticos em importantes movimentos artísticos. Sua arte genial chegou a representar o Brasil na prestigiada Bienal de Veneza, além de correr museus pelo mundo, a exemplo do Jeu de Paume, em Paris. Curiosamente, em vida, Bispo recusava o rótulo de artista, dado o caráter divino de sua tarefa. Mas a potência de sua obra ignora limites e até hoje atravessa fronteiras, transgredindo convenções e levando espectadores de todo o mundo ao encantamento.
Em 1925, muda-se para o Rio de Janeiro e torna-se marinheiro. Foi campeão brasileiro e sul-americano de boxe na categoria peso leve pela Marinha. Em seguida, passa a trabalhar na Light, empresa carioca de fornecimento de energia e como lavador de bonde e borracheiro. Sofre um acidente de trabalho e resolve ajuizar uma ação contra a empresa, ocasião em que conhece o advogado Humberto Leoni, que passa a representá-lo na demanda judicial.
A história da loucura de Bispo remonta à noite de 22 de dezembro de 1938, quando, aos 29 anos, conduzido por um imaginário exército de anjos, andou pelas ruas do Rio com um destino certo: ia se apresentar na igreja da Candelária, no centro. Peregrinou pelas várias igrejas enfileiradas na rua Primeiro de Março e terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou a uma confraria de padres que era um enviado, incumbido de julgar os vivos e os mortos. Detalhes dessa narrativa, meio real, meio ficcional, constam de um estandarte bordado por Bispo, uma das belas peças de sua vasta obra, que mistura autobiografia e auto ficção. É nesse estandarte que Bispo registra a frase-síntese de sua vida e obra: “Eu preciso destas palavras escritas para viver”. A palavra tinha para ele status extraordinário, por isso seus bordados estão repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos, mensagens.
O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Bispo. Era Natal, ele se convertia na figura de Jesus Cristo, mas acabaria sob o domínio da psiquiatria. Interditado pela polícia dois dias após a sua anunciação, foi enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde rótulos não tardariam a marcar sua ficha: negro, sem documentos, indigente.
Arthur Bispo do Rosário não é o nosso Duchamp e muito menos o nosso Van Gogh, mas olhando com atenção para a obra de Duchamp, vamos compreender melhor a de Bispo do Rosário, pois, apesar dos sotaques, ambos conversam no mesmo registro, falam do mesmo modo e dos mesmos assuntos.
A diferença de importância ou de qualidade entre as duas obras, só está na enorme diferença com que cada uma foi abordada e estudada. Só se pode dizer é que ficamos totalmente deslumbrados nessa teia de símbolos e signos que foi maravilhosamente inventada por esses artistas, por uma erudição mas também pela formidável ignorância dos homens em meio à sua irremediável solidão. Foi nas cavernas, nos campos, nas praças, nos mares e nos portos que se inventou e se reinventa até hoje a linguagem e a arte, e não nos mosteiros, nem nas universidades, erudita ou autodidata, a criação vem sempre depois, o que vem antes é o talento e a intuição com sanidade ou não, quando vemos tudo já está criado e no final não importa a vaidade, o prestígio e a efemeridade de qualquer discurso, opinião ou nota para a criação artística, o que importa mesmo é o que a arte gera. Um quadro pode até desaparecer, a arte pode até morrer mas o que fica e conta é a semente.

Fonte: Canalcontemporâneo

Nenhum comentário:

Postar um comentário