Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política. É curioso, no entanto, que boa parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem.
Claro que a desonestidade não é uma exclusividade nacional. Mas é interessante ressaltar a peculiaridade brasileira na admissão das "categorias" jeitinho e malandragem como elementos paradigmáticos à ação "moral". No nosso país, curiosamente, exaltam-se, ao mesmo tempo, dois tipos aparentemente incompatíveis: o honesto e o malandro. Nesse sentido, como bem observou o antropólogo Renato da Silva Queiroz, a cultura brasileira é permeada por uma ambiguidade ética em que termos como "honesto", "corrupto", "esperto", "otário", "malandro" e "mané" se misturam num confuso caldeirão moral. Esse caráter peculiar de nossa sociedade exige-nos alguns questionamentos: o que levou a cultura brasileira a essa ambiguidade moral? O que fez que nossa sociedade cultivasse certa glorificação da malandragem? E mais: será que essa exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para o Brasil? Ela tem contribuído para o engrandecimento de nossa cultura ou para sua degeneração?
No final do século XIX, o filósofo Friedrich Nietzsche se propõe a realizar uma crítica dos valores morais e, com isso, inaugura o seu procedimento genealógico. Rompendo com a tradição metafísico-religiosa que considera os valores como sendo eternos, universais e imutáveis, o pensador alemão passa a pensá-los por um viés histórico. Ou seja, no entender de Nietzsche, os juízos de valor, antes concebidos como absolutos, teriam sido, na verdade, criados numa determinada época e a partir de uma cultura específica. Tomando como ponto de partida essa perspectiva, o pensador alemão enxergou a necessidade de realizar um exame acerca das condições históricas por meio das quais os valores foram engendrados. E coloca as seguintes questões: de que forma esses paradigmas morais teriam sido gerados? Por quais povos e em que época? Em que condições se desenvolveram e se modificaram? Para efetivar essa investigação, Nietzsche põe a seu serviço os recursos da História, da Filologia, e da Fisiologia. Apesar disso, ao recorrer a essas disciplinas, o filósofo não assume o papel de um cientista positivista, que busca fatos históricos, fisiológicos ou antropológicos. Nietzsche está longe de ser um pensador, que se pretende isento e "objetivo". Para ele, a investigação genealógica já é um procedimento que se realiza a partir de uma determinada perspectiva valorativa. Sua análise deve ser entendida como uma hipótese interpretativa que tem como pano de fundo o referencial das ciências, mas não como um método científico que se embasa em fatos.
A Dialética da malandragem:
Em 1970, o crítico literário Antônio Candido publicou Dialética da malandragem, uma referência obrigatória para qualquer estudo filosófico que aborde o tema da malandragem brasileira. O trabalho, um ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias - romance publicado em 1854 por manuel Antônio de Almeida (1831-1861) -, toma o personagem principal do livro, Leonardo Pataca Filho, como o primeiro malandro da literatura brasileira. mostrando que Leonardo transita, cotidianamente, entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas, Cândido afirma que esse romance, já no século XiX, retrata - retrospectivamente - a ambiguidade ética da sociedade brasileira, na época de Dom joão Vi. A desarmonia entre as instituições ético-legais e as práticas sociais efetivas não seria novidade: "Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões de hemisférios e esta subversão final de valores. (...) É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva. (...) manifesta (...) o jogo dialético da ordem e da desordem". (A título de curiosidade, é bom lembrar que, em 1946, época em que a difamação de Nietzsche estava em seu apogeu, o mesmo Antônio Cândido publicou o ensaio O Portador, um dos primeiros textos a apontar a necessidade de se recuperar o pensa-mento nietzschiano).
Fonte: Revista Filosofia - Ciência e Vida.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
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MUITO LEGAL LEVANTAR ESSA PERSPECTIVA
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