terça-feira, 20 de outubro de 2009

A nossa diva


O novo trabalho da cantora Maria Bethânia tem 22 músicas e é dividido em dois álbuns: Tua, com canções de amor e Encanteria, com faixas mais festivas.
A faceta mística de Bethânia desponta claramente no Cd Encanteria, álbum do selo Quitanda agrega 11 composições inéditas, sambas e toadas sobre orixás, santos e as celebrações que os homenageiam. Caetano e Gilberto Gil cantam na faixa Saudade Dela. O outro Cd Tua, sai pela Biscoito Fino, também reúne 11 músicas inéditas e conta com a participação do pernambucano Lenine. Neste a cantora explora a sonoridade mais urbana, tem como mote o amor.

Em conjunto, os delicados trabalhos reafirmam que Bethânia já não cabe apenas nos rótulos de “romântica”, “brejeira” ou “artista de massa”. Ela é hoje, aos 63 anos e 46 de carreira, um clássico à altura de Edith Piaf, Nina Simone ou Ella Fitzgerald, ainda que de abrangência menor.
Em entrevista a Revista Bravo!, a cantora fala de seus dois novos álbuns, religião, sereias, também critica os que a atacam por usar a Lei Rouanet e elogia a senadora Marina Silva, possível candidata à Presidência da República.

Passa um pouco do meio-dia e, sob orientação do fotógrafo da revista Bravo!, Maria Bethânia caminha pelos jardins da Villa Riso, a parte remanescente de uma fazenda do século 18 que se transformou em espaço para festas. É lá, na estrada da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, que a cantora costuma receber jornalistas. O lugar fica próximo à casa onde mora desde 1972. "Por favor", pede-lhe o fotógrafo, "sente-se debaixo daquele pinheiro." Bethânia abana a cabeça negativamente: "Ali não". Com gentileza, mas irredutível, esclarece que pinheiros a incomodam. "Em minha terra, são árvores de cemitério.

"Oriunda de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, a irmã de Caetano Veloso, adepta de "uma irreligiosidade feroz", como já se definiu - nunca separou rigidamente o místico daquilo que os cartesianos chamam de real. Para a intérprete, o sagrado e o corriqueiro se entrelaçam. Um explica e alicerça o outro. Tal convicção, que a artista manifesta com uma naturalidade às vezes desconcertante, estimula um divertido folclore em torno dela, uma profusão de lendas que a tomam por feiticeira ou algo assim. "Quando Bethânia inicia uma turnê, chove. Evite usar negro ao lado de Bethânia. Sempre que Bethânia entra no estúdio, os monitores de ouvido acusam interferências." Das inúmeras histórias, a cantora é famosa por resguardar avidamente a própria intimidade, só confirma que não veste roupas pretas. Dispensa a cor em respeito às recomendações do candomblé, crença que abraçou junto com a devoção pelo catolicismo. "Mas podem usar negro perto de mim", avisa, às gargalhadas.
Durante a entrevista de quase duas horas, a cantora trajava uma pantalona azul e uma pashmina cor-de-rosa, espécie de xale que lhe recobria os ombros. Pelas mãos, braços e pescoço, espalhava algumas jóias, a maioria dourada. Um dos anéis e o relógio de pulso despertavam especialmente a atenção.
Entrevista:

Revista Bravo!: Que anel curioso…
Maria Bethânia: Você gostou? Traz a imagem do meu caboclo.

Revista Bravo!: Um índio?
Maria Bethânia: Exato, o caboclo que me protege, graças à Deus. Veja só que história inusitada: uma vez, desembarcando em Miami, topei na imigração com um policial branco, alto e muito forte. "Virgem Santíssima!", pensei. "Olhe o tamanho do sujeito!" No entanto, para minha surpresa, o homem sorriu. Quando pegou meu passaporte, notei que ostentava um anel de prata enorme. Uma peça luminosa, com o rosto de um índio. "Que anel incrível!", comentei em português. O homem continuou rindo como se me compreendesse. De repente, tirou o anel e me deu. Um gesto absolutamente improvável: a polícia dos Estados Unidos distribuindo presentes no aeroporto?! Tão logo retornei para casa, providenciei uma cópia do anel, menorzinha, em ouro. É a que estou usando.

Revista Bravo!: Qual o nome do caboclo? Pode revelar?
Maria Bethânia:Quer saber demais sobre o meu caboclo! (risos) Há décadas, pertenço à Nação Ketu do candomblé. Mas, ainda garota, em Santo Amaro, costumava visitar um terreiro de outra nação, a Angola. Ali os fiéis não cultuavam somente os orixás. Também recebiam o espírito dos índios que habitaram o Brasil, os caboclos. É uma tradição maravilhosa, que me comove. Por isso, conservo o anel. Sem contar que tenho uma bisavó indígena, da etnia pataxó.

Revista Bravo!: E o relógio?
Maria Bethânia: Comprei para marcar um acontecimento...

Revista Bravo!: Que acontecimento?
Maria Bethânia: Não vou entrar em detalhes. Foi algo bonito que me ocorreu e que se relacionava com o tempo. Precisava de uma coisa que simbolizasse aquilo.

Revista Bravo!: Como uma tatuagem?
Maria Bethânia: Tatuagem, não. O candomblé proíbe. Engraçado que, bem jovenzinha, sonhava em fazer uma. Cresci num lugarejo repleto de rios, mas passava as férias na praia. Sempre amei perdidamente o mar. Meu pai dizia que a terra e o oceano se espelham. "Tudo o que existe aqui em cima existe no fundo do mar." Eu o escutava, e minha imaginação corria solta: "Tudo, pai? Coqueiro, abelhas, montanha?". Ele jurava que sim. Não à toa, os marinheiros me encantavam. Admirava as tatuagens que carregavam nos braços. "Quando mandar em mim, arranjarei uma igual", planejava. Àquela época, poucas mulheres ousavam exibir tatuagem. Eu, atrevida, desejava uma nas costas, do lado direito, perto da bunda. Cogitei, primeiro, desenhar uma sereia. Sou fascinada por sereias. Depois mudei de opinião: "Vou botar uma estrela, ou um sol, ou uma lua". Acabei não desenhando nada.

Revista Bravo!: Sereias a fascinam?
Maria Bethânia: Imensamente. Criança, ganhava umas de minha mãe, pequeninas, de barro. Agora ganho dos amigos e dos fãs. Em casa, há um punhado: de metal, gesso, madeira. Sereias são as donas da voz... Senhoras da emissão, que cantam por minha boca. Só sei cantar graças às sereias. Elas me ensinaram. Minha voz apenas mora em mim. Não é minha. É das sereias. É de Deus.

Revista Bravo!: Uma metáfora, não? Ou você realmente acredita que sereias existam?
Maria Bethânia: Acredito. Certas pessoas conseguem ouvi-las, enxergá-las. Eu nunca as enxerguei. Mas as sinto, talvez porque queira senti-las. Creio que hoje esteja no mesmo lugar em que as sereias se encontram. Uma bênção!

Revista Bravo!: Julga-se predestinada?
Maria Bethânia: Sem dúvida. Nasci para o que faço. Já na infância, me comportava de maneira incomum. Andava maquiada por Santo Amaro como uma vedete, confeccionava minhas próprias roupas e imitava os personagens das peças que o grupo local de teatro montava. O povo da cidade morria de vergonha. Evitavam a minha companhia. Somente o Caetano me apoiava. Eu avisava: "Não adianta reclamar, pessoal! Sou do palco, vou viver do palco". Não suspeitava ainda que iria cantar. Pretendia virar trapezista. Circo me atraía muitíssimo. Uma ocasião, caí de amores por um palhaço, o Poli, mal o avistei no picadeiro. Paixão doida, de cinema! Fiquei tão envolvida que arrumei um jeito de conhecê-lo sem máscara. Era um homenzinho calvo, quase sexagenário. "Vou fugir com o senhor!", repetia. O coitado, lógico, apenas gargalhava. Quando o circo partiu de Santo Amaro, me desmanchei de tanto chorar.

Revista Bravo!: Em que momento você resolveu se tornar cantora?
Maria Bethânia: Com uns 15 anos. Ou melhor: Caetano resolveu por mim! (risos) Ele compunha a trilha de um curta [Moleques de Rua, do diretor Álvaro Guimarães, o Alvinho] e me pediu para gravá-la. Topei na hora. Quatro anos mais velho, Caetano me influenciava bastante. Nós o considerávamos o gênio da família. Desde cedo, o danado pintava como ninguém, tocava, escrevia canções. Lembro-me de vê-lo redigir uma peça inteira com 8 ou 9 anos. "Você vai fazer o papel da estrela", me prometia. Eu, um toquinho de gente, concordava. (risos) O negócio é que acabei gravando a trilha em Salvador, no ateliê de Mário Cravo Jr. [escultor]. Que período bom, rapaz! Pouco depois, em 1963, Alvinho encenou Boca de Ouro, a tragédia do Nelson Rodrigues, e me chamou para cantar um samba de Ataulfo Alves no prólogo. Iria interpretá-lo da coxia, sem aparecer. Mesmo assim, não deixei de caprichar nos trajes. Pus luvas, brincos, colar...

Revista Bravo!: Foi em Salvador, na década de 1960, que você se aproximou de Gal Costa. Continuam amigas?
Maria Bethânia: Continuamos, só que não como antigamente. Perdemos o convívio. Éramos grudadas, irmãs. Agora... Gal se distanciou muito de mim e de Caetano. Não brigamos nem nada. Ela apenas se isolou. Diminuiu o ritmo, se afastou da música, adotou um filho [Gabriel, em 2007]. Mora lá na Bahia e cuida do menino, linda. Um dia lhe perguntei: "Do que você mais gosta hoje, do canto ou da maternidade? Me responda, mulher!". Não respondeu. (risos) Tenho a impressão de que Gal, uma cantora inigualável, não se entusiasma tanto pelos novos autores. Deve avaliar que suas composições não estão à altura da voz dela, daquele cristal perfeito. É compreensível. A emissão de Gal exige de fato canções tão sofisticadas quanto as de Caetano, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Ary Barroso. Eu, em contrapartida, não enfrento o mesmo problema. Sou uma intérprete antes de tudo. Uma intérprete de textos, de ideias, que também pode cantar. Não sou uma purista.

Revista Bravo!: Você nunca pensou em gerar ou adotar um filho?
Maria Bethânia: Pensei em dar à luz com meus 18, 19 anos. Desisti mais tarde e não me arrependo. Filho são meus discos, é minha carreira. Não disponho da sabedoria de meus pais para educar uma criança. E o mundo em que vivemos... A correria, a violência, a competição, o ar irrespirável... Colocar um bebê nesse inferno? Em um planeta sufocado? Fico apavorada quando constato algumas inversões de valores. O dinheiro, por exemplo. Virou o centro do universo. Uma loucura! Às vezes, acho que a atual crise financeira é um alerta do próprio dinheiro: "Prestem atenção! Entendam a minha natureza. Posso dormir um hoje e acordar outro amanhã". Enfim... Sou cruel com os amigos e sobrinhos que têm filhos. Cobro que zelem pelas crias e não admito que se queixem. Decidiram ter? Então se redobrem para ampará-los.

Revista Bravo!: Os dilemas ecológicos parecem preocupá-la. Você apoiará a possível candidatura à presidência da senadora Marina Silva, que acabou de ingressar no Partido Verde?
Maria Bethânia: Marina me arrebata. É nobre, firme, sóbria. E domina a área dela, a do meio ambiente. Como Gilberto Gil [ex-ministro da Cultura], passou pelo governo federal sem se manchar, sem cometer erros crassos. Jurei que não votaria mais em candidato nenhum, nem do Executivo nem do Legislativo. Mas a Marina talvez me anime a voltar atrás. Fechei com Lula nas eleições de 2002 e, depois, parei de votar. Os políticos me irritam. Imaginam que somos idiotas.

Revista Bravo!: Recentemente, você sofreu críticas da imprensa por recorrer à Lei Rouanet para bancar alguns de seus espetáculos...
Maria Bethânia: (Interrompendo) Sofri... Uma palhaçada! Uma tristeza! "Governo de esquerda só pode ajudar quem não faz sucesso." Que raciocínio torto! A lei deve acolher gregos e troianos: o ministério avaliza os projetos e cada artista sai à caça de patrocinador, como manda o figurino. Qual o drama? Por que tanta chateação?

Revista Bravo!: Porque se trata de verba pública?
Maria Bethânia: Verba pública? Nunca trabalhei com verba pública!

Revista Bravo!: A lei prevê que os patrocinadores descontem os gastos do Imposto de Renda - um dinheiro que, em tese, iria para o setor público.
Maria Bethânia: Renúncia fiscal, menino! É um mecanismo ótimo! O mínimo que a cultura merece.

Revista Bravo!: E quanto à alegação de que shows como os seus ou os de Caetano, Ivete Sangalo e outros cantores famosos se pagariam apenas com a bilheteria, sem a necessidade de patrocínio?
Maria Bethânia: O quê? Apenas com a bilheteria? Qualquer espetáculo de certo porte no Brasil consome uma fortuna. Nossos custos são de ópera! A plateia pede um cenário elegante, uma iluminação de primeira, um som magnífico. Não condeno, não. Estão corretíssimos! Mas qualidade tem preço. Para subir num palco, preciso ensaiar 40 dias ou mais. Você sabe o que significa arcar com 40 dias de estúdio, técnicos, equipamento, músicos? Um absurdo! "Ah, a cantora também leva uma bolada." Leva? Quem menos ganha é a cantora. Com despesas tão elevadas, você julgaviável depender só da bilheteria? Não há Canecão lotado que cubra um espetáculo. Não há teatrono país que cubra - e olhe que os ingressos não são baratos, infelizmente. Sem patrocínio, amargaríamos prejuízo caso quiséssemos manter o alto nível dos shows. E, sem a lei, não conseguiríamos patrocínio nenhum. Zero! Portanto...

Fonte: Revista Bravo!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Com pimenta, com paixão

Com açúcar quase tudo se adoça
Um coração, um sorriso, um olhar, um paladar
Qual o teu medo?
Se eu te cubro beijos
Se eu adivinho teus desejos

Se abre para mim, abre tua boca
E dou para você tua gostosura preferida

Eu abro meus braços, abro minha alma
E me dou para ti com açúcar, com afeto

Sei que a vida não é sempre doce
Excitamos com pimenta, com paixão

Na minha língua sinto um sabor delícia
É teu beijo na minha boca com gosto de mel

Sempre me guardei para você
Sempre me preparei para você
Te encontrei e deixei de ser um embrião
Para ser hoje muito mais que um namorado
Para ser hoje um homem muito mais completo.

(Codinome Pensador)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O silêncio, o tempo e a paciência

O silêncio refúgia o que o som destrói
As palavras arruínam o que o silêncio constrói
Só se aprende com os falantes, o silêncio que vem de dentro
A silenciosa voz interior, gemido que ecoa no meu ouvido
O sono das aves adormecidas, esse sim é o verdadeiro silêncio.

O tempo é uma lembrança colhida, nunca esquecida
O tempo nunca está perdido, nós que nos perdemos
Então sejamos os perdidos para se achar em algum momento
Só a saudade e os poetas fazem as coisas pararem no tempo
E o futuro vira passado, quando vivemos uma vida inteira

A paciência cura o que a vida não tem calma
Só a paciência é a única solução para a soma de todos os males
Primeiro temos que ter paciência com nós mesmos
Para conseguimos todos os nossos desejos
Só esperando com paciência para ver o que vai nos acontecer.

(Codinome Pensador)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Kafka: louco, esquisito, gênio, visinário


O universo de Kafka
A escrita de Kafka é marcada pelo seu tom despegado, imparcial, atenciosa ao menor detalhe, e que abrange os temas da alienação e perseguição. Os seus trabalhos mais conhecidos abrangem temas como as pequenas histórias A Metamorfose, Um artista da fome e os romances O Processo, Amérika e O Castelo. Os seus contos são julgados como verdadeiros e realistas, em contato com o homem do século XXI, pois os personagens kafkanianos sofrem de conflitos existenciais, como o homem de hoje. No universo kafkaniano, os personagens não sabem que rumo podem tomar, não sabem dos objetivos da sua vida, questionam seriamente a existência e acabam sós, diante de uma situação que não planejaram, pois todos os acontecimentos se viraram contra eles, não lhes oferecendo a oportunidade de se aproveitar da situação, e muitas vezes, nem mesmo de sair desta. Por isso, a temática da solidão como fuga, a paranóia e os delírios de influência estão muito ligados à obra kafkiana, sendo comum a existência de personagens secundários que espiam e conspiram contra o protagonista das histórias de Kafka (geralmente homens, à exceção de alguns contos onde aparecem animais e raros onde a personagem principal é uma mulher). No fundo, estes protagonistas não são mais que projeções do próprio Kafka, onde ele expõe os seus medos, a sua angústia perante o mundo, a sua solidão interior.
A obra sobre Kafka é já de maior dimensão do que o trabalho próprio do autor e vai desde estudos literários sérios até análises psicológicas do autor, a quem já foram atribuídos todos os tipos de complexos e traumas concebíveis. A própria sexualidade de Kafka chegou a ser discutida, apesar de que para muitos de seus leitores o desejo por mulheres estar evidente na maioria de suas principais obras e o próprio Kafka não ter dado em vida nenhuma razão para que alguém afirmasse que ele era homossexual. No entanto, a obra de Kafka tem despertado enorme interesse entre os leitores gays, pois de acordo com especialistas, a maior parte dos seus personagens são homens homossexuais, que simultaneamente exibem a necessidade de se esconder e de se exibir, forçando-os a não ter certezas na vida e deixando-os em constante perigo de serem descobertos, abalando-os assim fortemente em suas sensibilidades.

O realismo Kafkiano
O realismo se materializa na obra de Franz Kafka. A deformação da realidade que pode ser sugerida pela obra do autor obedece a uma percepção aguda do mundo. Kafka mostra, em suas obras, as coisas como elas são e as coisas como elas são percebidas pelo olhar alienado.
Quando visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga, Franz Kafka ficou diante de várias obras de Picasso, naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas. Kafka falou que Picasso não pensava desse modo: "Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência". E acrescentou mais, que "a arte é um espelho que adianta, como um relógio", sugerindo que Picasso refletia algo que um dia se tornaria lugar-comum da percepção — "não as nossas formas, mas as nossas deformidades".
Mas quando alguém bate na tecla do "realismo kafkiano", que é a reação é de estranhamento imediato, quando não de descrença. O cavalo de batalha de sua obra grandiosa é A metamorfose, na qual o ficcionista transforma o personagem Gregor Samsa, já na primeira linha, onde está enterrada a chave da interpretação da novela, num "inseto monstruoso, que vem a ser uma barata. É preferível tentar mostrar como o realismo kafkiano (sem dúvida "problemático", uma vez que colide com a expectativa do leitor sobre o que o realismo é uma imitação da realidade, para simplificar as coisas).
Evidentemente não se trata do realismo dos grandes mestres do século XIX, embora Kafka se considerasse "parente de sangue" de Flaubert e Kleist. O século XX já era um outro mundo e os moldes de um Balzac ou Tolstói, por exemplo, não podiam dar conta dele, sob pena de um acomodado anacronismo estético-histórico. Sendo assim, era preciso criar novos modos de olhar e narrar e Kafka criou o dele, inconfundívelmente, que, por ser novo e renovador, aberto às ocorrências que surgiam em estado de casulo, causou espanto e estranheza quando chamado de "realista".

Herança sombria e genial
Em meados dos anos 70 já se escrevia mais sobre os textos kafkianos do que sobre o Fausto de Goethe, por sinal um dos autores prediletos de Kafka. Em vista disso faz algum sentido perguntar ingenuamente: por quê? A resposta também pode ser ingênua e direta: por muitos motivos: porque ele escreve bem, porque é original, muito intrigante, um dos grandes do século 20, etc. Acima de tudo, é claro, porque várias gerações de leitores do mundo inteiro reconheceram na sua prosa o brilho de uma imagem angustiante e poderosa do nosso tempo. Alguém já disse, com vontade de acertar, que Kafka é um outsider que ocupa o centro da arte contemporânea. O curioso nisso tudo é que ele próprio se considerava um fracasso, como consta na Carta ao Pai.Retomando a tentativa de destruição da obra, é conhecido que os manuscritos não publicados até 1924, ano da morte do escritor, eram esboços e fragmentos, a maioria deles bem estruturados, como O Processo, O Castelo e Amérika, além de dezenas de textos monolíticos, cujo tamanho varia desde o de uma novela até o de um haicai. Max Brod foi forçado a realizar verdadeiras montagens dos cadernos de notas para poder publicá-los. Até o ano de 1927 saíram na Alemanha, por seu intermédio, os três romances. As chamadas "narrativas do espólio" foram lançadas em 1931 e os diários e as cartas em 1937. A edição da ficção completa, iniciada em 1935, foi interrompida pelo nazismo para ressurgir depois em Nova York. (Deriva daí sem dúvida a informação de que a primeira tradução brasileira de A Metamorfose foi feita a partir de um incrível original norte-americano). Entre 1951 e 1967 a editora S. Fischer, de Frankfurt, incumbiu-se das publicações e o último volume a surgir foram as Cartas a Milena. O conjunto da obra editada por Brod, que talvez seja o grande mérito intelectual de sua vida, tem 11 livros. Cabe ainda destacar que desde os anos 80 uma equipe internacional de especialistas tem-se dedicado com afinco e sucesso a uma edição crítica dos escritos kafkianos.Quanto à difusão de Kafka pelo mundo afora, é um fato que ela começou cedo. Na França, por exemplo, graças ao entusiasmo dos surrealistas, algumas narrativas isoladas, como: A Metamorfose e O Veredicto, foram traduzidas entre 1928 e 1930. Nos países de língua inglesa as traduções tiveram início nos primeiros anos da década de 30, em trabalhos que se tornaram famosos. Na América Latina o primeiro tradutor de Kafka foi Jorge Luis Borges, que verteu A Metamorfose para o espanhol em 1938. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial o esquivo artista tcheco ficou conhecido em toda parte e pelo menos O Processo e A Metamorfose passaram a ser leituras obrigatórias do cidadão civilizado da nossa época.Três interpretações que marcam a recepção brasileira de Kafka, a de Otto Maria Carpeaux em Cinza do Purgatório, a de Sérgio Buarque de Holanda em O Espírito e a Letra e a de Anatol Rosenfeld em Texto e Contexto.Para ler Kafka é preciso ter lealdade às letras, embora cada palavra pareça dizer "interprete-me" e se recuse a suportá-lo. De qualquer forma não tem mais cabimento, hoje em dia, conceber este autor como um surrealista, um realista fantástico ou muito menos um cronista do absurdo. Evidentemente isso não implica negar que ele seja um autor difícil em todos os sentidos. Basta ver que não figura na literatura tcheca porque escreveu em alemão e que é no mínimo trabalhoso situá-lo entre os expressionistas alemães, a cuja escola devia pertencer. Pois, apesar de contemporânea do expressionismo, que tem por matéria-prima verbal o grito (mesmo que transformado em geometria, como ocorre com Trakl), a linguagem kafkiana é seca e sóbria e ostenta o corte sintático de uma dicção clássica, alheia ao subjetivismo e ao colorido de qualquer dialeto.
A existência de dois mundos na paródia que determina o encontro de dois tipos de frase nos textos kafkianos: uma curta e direta, que descreve e verifica laconicamente, e outra longa e complicada, que limita as afirmações, refutando-as ou iluminando-as por todos os lados. Além disso, a utilização maciça da linguagem burocrática, que domina muitos contos e passagens cruciais de O Processo e O Castelo.Vista no conjunto, a ficção de Kafka é marcada pela colisão entre a batida fleumática da narração e o aspecto sinistro dos acontecimentos. Para intensificar essa atmosfera de descompasso e mal-estar é decisiva a postura do narrador, que não tem marcas pessoais e não comenta nunca o que conta, limitando-se a levar quem o lê para a "máquina-de-moer" da trama inventada. O exemplo clássico nesse sentido é A metamorfose

Heróis de um mundo de imagens deformadas
A manipulação das imagens literárias exploradas por Kafka baseia-se em processos típicos do expressionismo. Os elementos do mundo no qual transitam os personagens são moldados por efeitos de redução e deformação e seguem um padrão calcado em certas obsessões expressivas. A pressão emocional a que estão submetidos os heróis embaralha ou suprime as categorias de tempo, espaço e causalidade e confunde constantemente a hierarquia ontológica entre homens e animais. Muitas vezes, o conteúdo metafórico da língua é tomado ao pé da letra: Gregor Samsa de A Metamorfose, não se sente como um inseto; ele simplesmente o é. Em outras ocasiões, a vivência interior é apresentada como absoluta: Joseph K. em O Processo, não acorda como se estivesse sendo processado; ele de fato o está.O foco das narrativas do autor é sempre o herói, a partir de quem é projetado o mundo. Uma vez que os narradores kafkianos não são oniscientes e, portanto, sabem pouco do herói, seus comentários muitas vezes não elucidam os fatos vividos por ele. Tais narradores em terceira pessoa garantem a objetividade dos acontecimentos, expressos sempre por meio de uma linguagem sóbria e ordenada, que acaba por alienar o personagem. Assim é que os heróis kafkianos se nos apresentam como seres estranhos, anônimos e incompletos, que padecem de falta de dimensão interior. Como arquétipos, eles são funções na organização, terrível sintoma de um mundo que transformou o indivíduo em peça de engrenagem. Por causa dessa última perspectiva é que se pode afirmar que as narrativas do escritor tcheco extrapolam o ambiente próprio da matéria imaginária sobre a qual está assentada boa parte da grande literatura para tomar contato com o mundo das relações concretas pelo qual circula o homem contemporâneo, surpreendido, enredado e aniquilado, constantemente, por situações kafkianas.

Da arbitrariedade ou diante do castelo
Vislumbrando na trajetória dos protagonistas kafkianos uma postura em favor do compromisso e do ajustamento completos ante um poder centralizador e autoritário (no caso, pré-fascista). O poder de Kafka se iguala ao direito, a homens desprovidos de direitos só resta o sentimento de culpa. Nesse sentido, muitos dos personagens da vasta galeria concebida pelo autor optam pela auto-humilhação, sacrificando suas qualidades intelectuais, o que levaria Kafka a proclamar a apoteose de um mundo desumanizado que aponta para o sentido inverso ao procurar reconstituir a responsabilidade absoluta do homem, que persevera até o fim na visão da liberdade. Kafka estaria criticando radicalmente as escravizações humanas, pela via negativa, e mostrando a vida deformada, falsa e irresponsável. Ambas as visões não desautorizam pensar que os heróis de Kafka, sobretudo em A Metamorfose, O Processo e O Castelo, querem ser aceitos pelos poderes e se ajustar por completo a eles, mas não conseguem, porque não sabem pactuar e entrar em compromisso.Estaria Kafka registrando a velha cidade natal, escura e decrépita para atacar o mundo crepuscular da monarquia habsburga, marcada pelo ódio generalizado ao poder paterno? Ao se revoltar contra a figura de pais, chefes e juízes, os heróis kafkianos não estariam contestando a autoridade dos velhos imperadores austríacos e alemães?Carta ao Pai, peça biográfica fascinante na obra de Franz Kafka, é um ajuste de contas que o escritor empreendeu com seu próprio pai, Hermann Kafka. Voltando toda sua energia combativa contra o poder tirânico exercido pelo chefe supremo da família, o escritor declara: "Da sua poltrona você regia o mundo. [...] Você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa". Muito perturbadora ainda é a imagem do poder paterno ocupando todas as regiões do mundo disponíveis: "Às vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido sobre ele".Uma autoridade arbitrária e inexpugnável também é encarnada pelo pai Samsa, em A Metamorfose, disposto a infernizar a vida do filho/inseto por meio de golpes de bengala e da artilharia de maçãs que dirige constantemente contra ele. A novela, uma das mais importantes obras da história da literatura, explora o que há de ridículo, trágico e grotesco na condição humana. Um poder ausente e autoritário corrói ainda a segurança e a própria identidade do agrimensor K. de O Castelo, que nunca conseguirá chegar ao topo da colina gelada, porque os donos do poder - uma corte de maliciosos burocratas - estarão sempre atentos para impedi-lo. Deixado inconcluso pelo autor, o romance amplia e consolida o alcance do adjetivo kafkiano.

O poder repleto de vazio
Uma das imagens mais expressivas do poder arbitrário ao qual se submete o homem moderno está presente em O Processo, cuja finalização foi abandonada pelo escritor. A obra trata do problema da indeterminação da lei e da condição puramente hipotética da justiça. É comum à grande maioria dos personagens criados pelo autor a consciência de serem indivíduos não ajustados à organização do poder. Mas, por outro lado, os heróis kafkianos costumam ser vítimas de uma força que eles mesmos potencializam. Nas peças literárias (como na própria vida de Kafka), o foco é quase sempre a descrição de um vazio de poder que se apresenta plenamente cheio, o que leva a vítima deste a imaginá-lo como proporcional à força de sua ausência. Em seu conjunto, a obra de Kafka trata do terror que resulta do fato de o postulado da razão nem sempre levar ao entendimento. Seus protagonistas são portadores da razão, mas sofrem por estar à margem dela. Assim, graças ao que ignoram e não ao que conhecem, é que eles revelam quão arbitrário é o poder.

O Enigma de Kafka
Genialidade e doença mental têm sido com freqüência correlacionadas a produções literárias ou artísticas de diversos autores, que tiveram suas obras e suas vidas enquadrinhadas. Assim o tentaram com Freud, Nietzsche, Dostoiewiski, Edgard Allan Poe, Baudelaire, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, etc. Aliás, há certos segmentos da cultura popular que professam a falsa idéia da suposta sabedoria dos perturbados mentais que seriam lindeiros da genialidade, tese admitida de até por Shakespeare e outros pensadores.
Não se pode esquecer ainda que a psiquiatria e a psicanálise, devem muito dos seus postulados aos filósofos gregos Platão, Sócrates, Aristóteles e aos dramaturgos Sófocles e Eurípedes, que possuíam profundo conhecimento e compreensão de natureza humana. Kafka que viveu mais ou menos na mesma época e no mesmo país que Freud, mas que não se conheciam, empregam em suas produções literárias, técnicas de psicodinâmica como a fusão onírica, com o real e de catarse, ou seja, a ab-reação ou descarga de idéias ou emoções em sua forma original que se libertam do inconsciente para o consciente, técnicas essas que Freud havia desenvolvido na terapia psicanalítica.
Tido até algum tempo como um louco consciente, seus escritos foram recebidos como patogramônios de um alienado mental. Atualmente, porém, é reconhecido como um dos maiores escritores de todos os tempos, um gênio da estirpe de um Shakespeare e que ninguém aprendeu com maior acuidade do que Kafka a situação absurda, estranha e paranóica do mundo atual, tanto que surgiu em nossa língua um novo adjetivo: kafkiano, justamente, para expressar tudo que é estranho, incoerente, incomparável, fantasmagórico, selo do mundo em que vivemos.
Em suas obras, Kafka centraliza todas as coisas que tornam difícil viver em nossa época, onde as organizações e as estruturas em vez de atuarem em prol da pessoa humana, contra ela se colocam. E o faz de modo alegórico, como se tudo não passasse de um pesadelo, mas que é uma realidade, entretanto, em um sentido simbólico, uma analogia e uma sintetude com situações reais, absurdas, incompreensíveis, que por vezes mudam o curso de nossa vida cotidiana.
Nas suas composições as personalidades são representadas metaforicamente por animais e com eles assemelham-se, assim, no conto A metamorfose à personagem principal é uma barata, inseto em que um caixeiro-viajante se encontra transformado, ao acordar, depois de uma noite de sono. Mas, o importante é que não se trata de um pesadelo ou alucinação e sim de um fato social, de tal sorte que o cidadão Sanza deixou de ser gente e agora não passa de um mísero inseto. O que queria Kafka dizer com a possibilidade de um ser humano poder, de um momento para outro, virar uma barata?
O significado alegórico do fenômeno diz que o cidadão Sanza antes de ser transformado num mísero inseto era um respeitado pai de família, sustentáculo importante de sua gente, mas que devido a uma doença incapacitante tornou-se um peso morto para a família, um problema cuja solução seria o seu internamento num asilo de inválidos, valendo lembrar que no mundo moderno qualquer um pode se encontrar na mesma situação do cidadão Sanza.
Em outro livro, que se tornou famoso porque foi tema de um filme cinematográfico, dirigido por Orson Wells, chamado O Processo, Kafka relata a história de determinada pessoa o Sr. Joseph K que, ao acordar, após uma noite de sono, encontra sua residência cheia de gente a investigar com o objetivo de abrir contra ele um processo, apesar de não serem funcionários de Justiça, embora ninguém lhe diga qual a razão de semelhante processo.
Apesar de não ter sido preso, é obrigado a comparecer a várias reuniões no Tribunal de Justiça, sem culpa formada e sem saber qual a acusação de que é alvo. Inquieto, por desconhecer o que fez de errado, procura indagar, em vão, de pessoas estranhas qual o motivo da denúncia para que dela possa se defender. Enquanto isso, no próprio Tribunal acareiam fatos surpreendentes e um deles é que acaba tendo uma relação erótica com uma pessoa que não conhece!
A cada tentativa de defesa sente-se cada vez mais culpado, terminando por ser condenado a despeito de ignorar qual foi o seu crime. Um horrível pesadelo, interminável, esquisito, estranho e agressivo, mas, real, apesar de fantasmagórico.
Dizem os estudiosos do assunto que o crime do qual é acusado Sr. Joseph K. no conto O Processo, é uma alegoria ao pecado original segundo um mito religioso, que teria ocorrido há milhões de anos e que deu lugar ao sentimento de culpa fundamental e remorso, base da angústia humana. Lembramos, apesar de que do mito da culpa original, conforme a cultura judaico-cristã, ninguém nasce isento dela e que não escapamos das idéias que nos acompanham durante toda a vida, de que fizemos algo no passado filosófico que não teríamos feito se fossemos melhores.
Segundo a antropologia psicanalítica o sentido da culpa essencial do homem foi o parricídio e a posse da mãe, que serviu de tema à tragédia Édipo, do dramático grego Sófocles e que S. Freud chamou de impulso de Édipo. O parricídio, ocorrido na horda selvagem primitiva, renasce depois, simbolicamente, no banquete totêmico (morte do pai e canibalismo) e cerimoniais eucarísticos de cultos religiosos judaíco-cristão.
Em O Castelo, outro conto de Kafka, relata-se a história absurda de um agrimessor que foi contratado para realizar certos serviços profissionais num Castelo, mas que nele nunca conseguiu penetrar por causa de inúmeros obstáculos e impedimento que não lhe deixaram realizar o seu trabalho. Singular e estranhamente, porém, dias depois recebe do dono do Castelo, uma absurda carta na qual, depois de muitos elogios, agradece o trabalho que nunca conseguiu realizar.
Neste conto, existe uma situação dialética peculiar de Kafka, contraditória, onde ele pretende mostrar que na vida real nem sempre somos tomados pelo que fazemos, enquanto somos elogiados pelo que deixamos de fazer, ou seja, deixamos de ser tomados pelo bem que fazemos, em troca somos agraciados pelo mal que deixamos de praticar.
Sabemos que só é possível descobrir a razão das idéias de uma pessoa através do conhecimento de sua personalidade e do seu meio. Franz Kafka foi um escritor judeu de língua alemã, nascido em Praga (Tchecoslováquia) a 3 de julho de 1833 e falecido de tuberculose pulmonar em 1924, filho de pais judeus mas que nunca professou os preceitos da religião judaica. Apesar de criado no seio da sua típica família judia, gloriava não ter nada com os judeus.
De temperamento introvertido (esquizotímico), grandemente inquieto e desastroso com as condições do mundo onde vivia, e que achou muito estranho, sempre foi uma pessoa deslocada de sua ambiência. Desde criança, sempre teve problemas com o pai, uma figura autoritária e ao qual escreveu uma missiva tornada célebre (e que nunca chegou a ser entregue), sob o nome de Carta ao pai, onde com patética penetração, expõe o conflituoso relacionamento pai-filho, afirmando que tal falta de compreensão e entendimento era de responsabilidade de ambos.
Esses traços característicos e temperamentais assimilam e distinguem, de modo permanente, toda a obra do autor que gira em torno de um mundo predominantemente absurdo, insensato, paradoxal, inconseqüente que o faz difícil de ser vivido. Mas o específico e residual nela é a aparência de onirismo que contém, o onírico confundindo-se com o real, assumindo uma feição fantasmagórica, porém, sem perder o seu fundo de realidade.
Apesar de não ser um escritor político no sentido estrito da palavra, os seus trabalhos continham sempre um teor de denúncia contra a feição autoritária e brutal com que se verificam as relações das pessoas com aqueles que são autoridades, daí porque ele foi um escritor proibido tanto nos países comunistas como nos nazistas, tendo seus livros queimados pelo Estado mesmo depois de sua morte, em 1924.
Também foi condenado na Tchecoslováquia como responsável pela revolta chamada de "Primavera de Praga", ocorrida em 1968, em um processo autenticamente kafkiano. Até pouco tempo antes do seu falecimento só tinha publicado retalhos de suas produções, tendo mesmo recorrido, textualmente, ao seu grande amigo Max Brade para que destruísse todos os seus manuscritos e evitasse a reedição dos já publicados.
Aliás, Kafka quando vivo não teve a menor repercussão literária, sendo tido e havido como um maluco e seus escritos só depois da 2ª Grande Guerra, é que as pessoas começaram a sentir, por experiência própria, as contradições de um medo eminentemente kafkiano onde as grandes potências gastam enormes fortunas visando a acumular potentíssimos armamentos para a defesa e ataque contra possíveis inimigos hipotéticos.
Por essa razão, não é de admirar que neste mundo louco em que moramos, um mundo absurdo como que egresso da imaginação (catártica de Kafka). Suas obras, antes interpretadas como simples delírios de uma mente patológica passou a ser vistas como uma realidade.
Para terminar chegou o momento de decidir se Kafka foi um louco, um gênio, um profeta. Se ele tivesse vivido nos tempos bíblicos certamente seria classificado como um profeta. O papel cumprido por Kafka, no seu tempo foi, sobretudo o de um profeta anunciando o que ainda não estava sendo percebido e sentido. Por isso, foi considerado um louco e visionário.

Um fio vermelho em Kafka
Em maio de 1924, Kafka agonizava, dilacerado por uma tuberculose que provocava lesões na garganta tão sérias que a respiração, a fala e a deglutição estavam seriamente comprometidas. Sua aparência física materializava uma agonia na qual se tornava quase impossível encontrar a esperança de vencer a morte. Aos 41 anos, kafkianamente, Kafka morria de fome, realizando um incrível esforço para revisar as provas tipográficas de seu texto Um artista da fome. No dia 2 de junho, a agonia atingia o nível do insuportável. Ele pede ao seu médico: "Mate-me, senão você é um assassino". Finalmente, numa terça-feira, 3 de junho, ao meio-dia, Kafka morre. Morre mas não desaparece. A partir daí, uma literatura que se estima em mais de vinte mil títulos, sem contar as centenas de milhares de páginas nunca publicadas de autores anônimos e as incalculáveis reflexões que sua pequena obra escrita desperta em cada um de seus leitores, é posta em movimento, com uma intensidade tão enérgica que nada indica que virá a se esgotar.
Enquanto os homens enfrentarem as mazelas do dia-a-dia urbano, do mundo organizado do qual nunca mais se espera que eles saiam, Kafka está afixado permanentemente numa das vias principais, próximo do olhar de toda a multidão anônima que por ali circula. Kafka é daqueles poucos autores cuja obra transborda os textos e se transforma em parte do cenário das vidas humanas, ressoando em todas as dimensões das situações dos homens. Toda organização estatal de qualquer país do mundo tem algo de kafkiano. Toda instituição, pública ou privada, religiosa, acadêmica ou mafiosa, midiática, beneficente, esportiva, social ou o que seja tem algo de kafkiano em seu interior. Toda casa, toda vida em família reserva, em seus aposentos, um nicho kafkiano. Toda fala entre os homens, toda comunicação acolhe também tanto a demanda por um entendimento quanto o mal-entendido, e ambos podem ser kafkianos. Enfim, todo homem guarda em seu interior uma estranheza de si consigo próprio que é também kafkiana. Kafka penetra tão fundo a vida que é capaz de se instalar em compartimentos e lugares do acontecer humano tão raros que poucos autores, para não dizer nenhum outro, conseguem lhe fazer companhia.
Entre as letras e a vida humana, o espaço é difícil de ser encurtado e não existe nenhuma trilha fácil, nenhum atalho facilitador. Por isso, é bom desconfiar de toda escrita e, antes de mais nada, desconfiar de nós próprios. Kafka é herdeiro dessa tradição que visa levar os homens a desconfiarem de si próprios, exacerbando-a ao máximo, a ponto de que ela incida sobre o próprio texto que realiza (não devemos esquecer sua séria demanda de que sua obra escrita fosse queimada após a sua morte). E é essa ampliação da desconfiança por sobre todo o campo textual que levou muitos de seus primeiros críticos a verem em seus escritos algo assim como uma ruína do trabalho literário, a representação de um declínio contextualizado historicamente: os escritos de Kafka como porta-vozes das impossibilidades burguesas para responder com positividade às demandas históricas que exigiriam a superação da própria burguesia. Ou ainda o registro das impossibilidades do homem diante do acúmulo de insucessos história adentro. Porém, mesmo os críticos mais inquietos com o estado de coisas realizado por Kafka reconhecem em suas obras a presença de um grande escritor. E principalmente a realização de um enigma que nunca se fecha plenamente, porque nele, apesar de tanta negatividade, apesar de tanta desconfiança, o homem ainda se ergue por inteiro.
Na verdade Kafka era um sonhador que poria em atividade, em seu trabalho literário, um enorme desejo de liberdade e uma extrema sensibilidade para com a violência promovida pelas fontes de poder arbitrárias, que se deslocariam como que em ondas sísmicas desde um epicentro do poder do pai sobre os filhos às instâncias burocráticas do estado autoritário, e que o levariam a criar uma obra literária na qual todo o estado de coisas é considerado "desde o ponto de vista de suas vítimas". Devemos sempre acompanhar um “fio vermelho” imaginário mas presente nos textos kafkianos que a leitura nomeia-se "sociopolítica" e que nos permite apontar o conteúdo antiautoritário da escrita kafkiana. E o faz como um autor acostumado ao diálogo polêmico com outros críticos, e como um experimentado investigador de textos das ciências políticas e sociais. Sua pesquisa fixa um Kafka que flerta simpaticamente com idéias libertárias, fazendo das experiências do escritor com leituras e personagens anarquistas uma das evidências de suas convicções pessoais, que atuariam com profundidade ao longo de toda a sua obra. É verdade que, em Kafka, as organizações sociopolíticas e culturais são responsáveis, em grande medida, pelo sofrimento dos homens, mas esse sofrimento, a nosso ver, não se reduz em seus escritos apenas a um produto do entorno, não provém exclusivamente do estranhamento e da hostilidade do mundo exterior. Ethos e Cosmos se integram, mas um não se dilui no outro. Em Kafka, um agulhão de estranhamento parece estar implantado nas próprias entranhas de cada homem e impede a possibilidade de uma síntese pessoal estabilizadora.
A fonte de inspiração do trabalho literário de Kafka é muitíssimo ampla. Como por exemplo, ele sustenta que A colônia penal teria como origem uma crítica ao colonialismo, ao militarismo e à burocracia, já em O processo, põe em cena a hipótese de que processos anti-semitas teriam sido a sua fonte, ou ainda que a irmã Otla seria o modelo arquetípico sobre o qual teria sido construída a personagem Amália, da novela O castelo.

Kafka e suas obras publicadas:
· Cenas de um Casamento no Campo (1907)
· Considerações (1908)
· Aeroplano em Brescia (1909)
· Amerika (1910,1927)
· O Veredicto (1912)
· A Metamorfose (1912, 1915)
· A Sentença (1912, 1916)
· Meditação (1913)
· Contemplação: O Foguista (1913)
· Diante da Lei (1914, 1915)
· A Colônia Penal (1914, 1919)
· O Processo (1914,1925)
· Um Relatório para a Academia (1917)
· A Preocupação de um Pai de Família (1917)
· A Muralha da China (1917, 1931)
· Carta ao Pai (1919)
· Um Médico Rural (1919)
· Poseidon (1920)
· Noites (1920)
· Sobre a Questão das Leis (1920)
· Primeiro Sofrimento (1921)
· Cartas a Milena (1920, 1923)
· Investigações de um Cão (1922)
· Um Artista da Fome (1922, 1924)
· O Castelo (1922, 1926)
· Uma Pequena Mulher (1923)
· A Construção (1923)
· Josefina, a Cantora ou O Povo dos Ratos (1924)
· Sonhos (1924)


Kafka cinematográfico:
· The Trial - Orson Welles (1963)
· The Castle - Rudolph Noelte (1968)
· Informe para una academia - Carles Mira (1975)
· The metamorphosis of Mr. Samsa - Caroline Leaf (1977)
· Informe per a una acadèmia - Quim Masó (1989)
· Kafka - Steven Soderbergh (1991)
· The Metamorphosis of Franz Kafka - Carlos Atanes (1993)
· Amerika - Vladimir Michalek (1994)
· Das Schloss - Michael Haneke (1996)
· La metamorfosis - Josefina Molina (1996)
· The Trial - David Hugh Jones (1996)
· Metamorfosis - Fran Estévez (2004)

Fonte: trechos do livro (Kafka em 90 minutos/ Paul Strathern)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ave, Ave Maria, Senhora de Nazaré



Porque eu tenho esperança e muita fé
Porque eu quero ter amor bem mais ainda
Porque te amo, Senhora de Nazaré
Quero puxar a corda da tua berlinda

Ave, Ave ó Senhora da Berlinda
Ave Maria este é meu grito de fé
Ave, Ave, Deus te fez a flor mais linda
Ave, Ave Maria, Senhora de Nazaré

A tua corda, me enlaça nesta hora
Me prende a Deus de corpo, alma e coração
Assim é doce ser escravo teu Senhora
Servindo a Deus em cada homem meu irmão

Ave, Ave ó Senhora da Berlinda
Ave Maria este é meu grito de fé
Ave, Ave, Deus te fez a flor mais linda
Ave, Ave Maria, Senhora de Nazaré

Em Nazaré eras escrava do Senhor
Porém ninguém viveu maior libertação
Cordas de Deus te amarraram por amor
Foi a graça que prendeu teu coração

Ave, Ave ó Senhora da Berlinda
Ave Maria este é meu grito de fé
Ave, Ave, Deus te fez a flor mais linda
Ave, Ave Maria, Senhora de Nazaré

Puxar a corda da berlinda é para mim
O compromisso de levar-te e te seguir
Pelos caminhos desta vida até o fim
É só fazer aquilo que Jesus pedir

Ave, Ave ó Senhora da Berlinda
Ave Maria este é meu grito de fé
Ave, Ave, Deus te fez a flor mais linda
Ave, Ave Maria, Senhora de Nazaré.


O Círio de Nazaré, em devoção a Nossa Senhora de Nazaré, é uma das maiores e mais tradicionais festas religiosas do Brasil, sendo celebrada desde 1793, na cidade de Belém do Pará. É celebrada anualmente no 2°domingo de outubro.
O Termo "Círio" tem origem na palavra latina "Cereus", que significa vela grande. O Círio foi instituído em 1793 em Belém do Pará até 1882, saía do Palácio do Governo. Em 1882, o bispo Dom Macedo Costa, em acordo com o Presidente da Província, Dr. Justino Carneiro, instituiu que a partida do Círio seria da Catedral da Sé, em Belém.
Atualmente as manifestações de devoção profanas e religiosas estendem-se por quinze dias, durante a chamada quadra Nazarena. Entre os pontos altos dessa manifestação, destacam-se: romaria rodo-fluvial, romaria rodoviária, romaria fluvial, moto-romaria, trasladação, procissão do Círio, recírio.
O Círio tem vários simbolismos. Os principais são: a berlinda, a corda, o manto, as velas ou círios e o tradicional almoço com a família.

(Codinome Pensador)