sábado, 19 de junho de 2010

O mundo ficou mais burro sem Saramago


Morreu ontem em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na Espanha, onde morava desde de 1993, o escritor português José Saramago, aos 87 anos, de falência múltipla orgânica, após uma prolongada doença. O escritor morreu acompanhado pela sua família e despedindo-se de uma forma serena e tranquila. Saramago que em 1998 ganhou o único Prêmio Nobel da Literatura em língua portuguesa.
Saramago era um homem de uma lógica absurda e um dos meus escritores favoritos e para ser bem sincero, ele mudou a minha vida com sua imaginação, polêmica, ironia sútil e suas idéias inovadoras e corrosivas sobre a sociedade atual e o ser humano. Sinto-me orfão com sua morte, como ele mesmo disse, que a morte é simplesmente a diferença entre o estar aqui e já não mais estar.
Combatia as religiões com fúria, dizia que elas embaçam nossa visão, mesmo assim não consigo deixar de pensar que adoraria que neste momento ele estivesse tendo que dar o braço a torcer ao ser surpreendido por algum outro tipo de vida depois desta que teve por aqui. Uma lucidez do grau que ele tinha é um privilégio de poucos, impossível eu não escapar do clichê mas definitivamente o mundo ficou mais burro e mais cego com a morte de Saramago. Tenho certeza que neste mundo há finais que também são começos, mortes que são nascimentos. Ele foi embora, infelizmente, mas ficou para sempre entre nós amantes da boa literatura.
A vida de José de Sousa Saramago, (Saramago que é uma planta crucífera, rasteira e comestível que cresce na região de Vila Nova de Milfontes em Portugal. Essa planta era comida para afastar a fome dos Saramagos, que eram os seus pais, camponeses da aldeia portuguesa de Azinhaga), começa em 16 de Novembro de 1922 com o seu nascimento. Da casa pobre do Ribatejo vem para Lisboa onde vive até aos doze anos, cumpre a instrução primária numa escola da Morais Soares e dois anos no Liceu Gil Vicente até se iniciar em estudos mais ligados ao trabalho como serralheiro mecânico na escola industrial Afonso Domingues, em Xabregas. Aos 22 anos casa-se e tem a sua primeira filha Violante. Em 1947, a Minerva publica um romance seu, intitulado A Viúva, pelo autor e transformado em Terra de Pecado, pela editora. Torna-se editor literário e só em 1966 surge um livro de poemas do então desconhecido José Saramago.
Para mim bons escritores a gente encontra a assinatura sem procurar, ela nasce da prática, da repetição, do trabalho da própria atividade literária. Outros a buscam de forma consciente e clara, num diálogo aberto com o leitor. Assim foi Saramago.
Ele tinha um jeito próprio de escrever, inaugurado em 1980 com Levantado do Chão. Adota à partir deste livro o uso intensivo da vírgula como sinal fundamental da pontuação do texto, ocupando a função de todos os outros sinais, menos o ponto final.
Muitos críticos diziam que a forma Saramago se manteve nos romances a partir de então e pode muito bem ser reproduzida. Por isso mesmo, muitos o liam como um repetidor de si próprio, com seus parágrafos sem hora para acabar, suas “circunavegações” em torno de pequenos temas, suas passagens radicais do narrador para as personagens que, como um novelo, enrolavam-se sobre si mesmo para ganhar a estrutura de um romance.
Em Memorial do Covento narra o período de construção de um Convento, em Mafra, em cumprimento de promessa feita pelo rei D. João V. Concomitantemente, é narrada a construção de uma passarola, sonho do padre Bartolomeu com os auspícios do rei, mas perigosamente à margem do Santo Ofício. Uma das questões corticais neste romance é a fronteira entre a história e a ficção. Saramago não se vê como um escritor histórico mas antes como um autor de uma história na História. O seu argumento traduz-se numa estratégia narrativa que entrecruza três planos relevando o da ficção da História e o do fantástico em detrimento do plano da História.
Com Objeto Quase, José Saramago denuncia o estado de animalização do homem e a materialização da violência como um capítulo comum, doloroso da história da humanidade. Objeto Quase é uma coletânea de seis histórias breves e tensas em um gênero não muito praticado por ele, os climas são variados, podendo ir do humor sarcástico ao lirismo romântico, os personagens também, mas algo os une intimamente: o pessimismo, onde se espelha não somente o presente, mas o futuro também. Vemos nesta obra o homem "coisificado" e as coisas "humanizadas. Um reflexo de nossa sociedade, que se preocupa mais com a segurança dos pertences do que com o próprio cidadão.
O seu livro Ensaio Sobre a Cegueira foi adaptado para o cinema e lançado em 2008, produzido no Japão, Brasil e Canadá, dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Depois que viu seu livro Ensaio sobre a Cegueira no cinema, o escritor falou: "Este é um livro que escrevi com uma franqueza terrível, com o qual eu queria que o leitor sofresse tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele descrevi uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso, e talvez Fernando Meireles adaptando meu livro para o cinema eu tenho tido uma espécie de redenção onde expulsei todos os demônios que ainda me afligiam”.
É possível tentar emulá-lo e não custa deixar o exemplo mais evidente. Em 2003, o repórter da Folha de S.Paulo Ivan Finotti, num texto irônico, descreveu-o assim: “O homem sentado chama-se José Saramago, nasceu na aldeia de Azinhaga, em Portugal, foi serralheiro, mecânico, desenhista industrial, funcionário público, editor, tradutor e jornalista, é escritor de profissão e tem oitenta anos, posto que à vista pareça menos idoso. Não está listado no rol das profissões deste homem, mas uma de suas atribuições mais frequentes tem sido a de criar controvérsias. Realmente Saramago era sinônimo de polêmica".
A possibilidade e a vontade de reproduzir algumas de suas técnicas só mostram o quanto seu estilo foi, ao mesmo tempo, desafiador para os leitores e popular. Como poucos escritores, Saramago pode ser criticado ou elogiado até por quem não o leu, mas sabe que seus parágrafos são longos, seus livros não usam aspas ou travessão, há letras maiúsculas depois das vírgulas indicando o início da fala das personagens. A discussão literária, com ele, era um direito garantido a quem quer que se dispusesse a enfrentar sua obra.
Quando o Prêmio Nobel veio, nos anos 90, a polêmica divisão dos portugueses entre os fãs de Saramago e os de António Lobo Antunes ganhou força internacional, eles, que não se falavam, alimentavam o Fla-Flu literário. Ainda que Lobo Antunes tenha a preferência dos críticos, é preciso reconhecer que ambos tinham mãos fortes e projetos opostos, ou seja, os dois são craques.
Para além disso, havia a política: Saramago era um comunista dos mais clássicos, para não dizer caretas, e transpôs para sua literatura toda essa sua formação e engajamento. Mesmo quando vai para o passado, um de seus olhos estava necessariamente visualizando o presente. Talvez o exemplo mais radical disto seja o romance A Jangada de Pedra, que trata da complexa relação da Península Ibérica com a Europa, justamente no momento em que Portugal está entrando na União Europeia. Tem também o seu livro mais polêmico, aquele que fez com que deixasse a Portugal carola mesmo depois da Revolução dos Cravos, que foi O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Saramago, que já foi filiado ao Partido Comunista Português, se definia também como adepto da democracia. Para ele, a falta de debate sobre esse assunto transformava-a em “uma santa no altar, de quem não se espera milagres” e que existe nos tempos de globalização da economia “apenas como uma referência”. “Não se repara que a democracia em que vivemos é sequestrada, condicionada, amputada”. “O poder de cada um de nós limita-se na esfera política a tirar um governo de que não gosta e colocar outro de que talvez venha a gostar. Mas as grandes decisões são tomadas em outra esfera. E todos sabemos qual é: as grandes relações financeiras internacionais.” Disse ele durante um debate em Portugal.
O escritor dizia-se obrigado a mudar um mundo injusto que encontrou. “O espaço ideológico e político onde eu podia esperar pelo menos alguma coisa que me confirmasse essa idéia era muito claro. Era a esquerda, a esquerda comunista. Aí estou”, resumiu durante entrevista do jornal Folha de S.Paulo, em 2008.
Era um grande fã da ironia, afirmou na ocasião que a pergunta sobre sua militância de esquerda apesar dos crimes cometidos na União Soviética é “inevitável em qualquer entrevista”. “Poderia perguntar à pessoa se ela era católica. Provavelmente me diria que sim. E eu teria que perguntar, para seguir na mesma linha: ‘Depois da inquisição, como é que você continua a acreditar?’”, afirmou o escritor.
“Sou aquilo que se podia chamar de um comunista hormonal. Da mesma maneira que tenho no corpo, não sei onde, um hormônio que me faz crescer a barba, há outro hormônio que me obriga, mesmo que eu não quisesse, por uma espécie de fatalidade biológica, a ser comunista. É muito simples”, disse.
Apesar de ser um histórico defensor do regime cubano, Saramago ensaiou um rompimento em 2003, quando 75 dissidentes foram presos e três pessoas foram executadas em um julgamento sumário.
Em uma carta, escreveu: "De agora em diante Cuba segue seu caminho, eu fico aqui. Cuba perdeu minha confiança e fraudou minhas ilusões".
Pouco depois, em entrevista a um jornal cubano, reatou: "Não rompi com Cuba. Continuo sendo um amigo de Cuba, mas me reservo o direito de dizer o que penso, e dizer quando entendo que devo dizê-lo".
Era ateu convicto transforma as passagens bíblicas em matéria literária e política, em que são questionados dogmas católicos, como a virgindade de Maria e valorizados modos de vida comunitários, em oposição ao modo de vida capitalista. Provocou, assim, a ira de cristãos, mas também daqueles que fazem sua profissão de fé no capitalismo mais ortodoxo.
Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, por outro lado, segue uma tradição de fazer da Bíblia, um livro popular por excelência, fonte de criação literária crítica, uma vertente que tem seu ponto literário mais alto na saga dedicada a outro livro José e seus irmãos, de Thomas Mann.
Como sua obra em poesia começando com Poemas Possíveis de 1966 até 1975 com Provalvemente alegria e em prosa, onde se destacam Objeto Quase de 1978, Levantado do Chão de 1980, Memorial do Convento de 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis de 1984, A Jangada de Pedra de 1986, O Evangelho Segundo Jesus Cristo de 1991, Ensaio Sobre a Cegueira de 1995, As Intermitências da Morte de 2005, Caim de 2009, O Caderno 2 de 2010, os seus ensaios com Deste Mundo e do Outro de 1971 até Discurcos de Estocolmo em 1999, teatro com A Noite de 1979 até 2005 com Don Giovani ou dissoluto absolvido, diários de memórias com Os cadernos de Lanzarote Vol. 1 a 5 e um único conto infantil chamado A maior flor do mundo. Saramago até se dar ao luxo de se “repetir” na forma que, nunca é demais lembrar, inventou mas se manteve até o fim da vida buscando criar em torno de novos temas, mostrando uma vitalidade incomum para um escritor de quase 90 anos.
Numa palavra ele mostrava em seus textos uma resposta ao vazio que poderia iluminar uma vida com uma centelha cósmica de verdade, criatividade e sabedoria. Agora só nos resta falar um muito obrigado para o mestre Saramago e nunca deixar que se apague esse riquíssimo universo de uma constelação literária de primeira grandeza e criação estética impecável criado por ele, que nos alegrou até o seu último dia de vida.

Fonte: Uol.

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